segunda-feira, 24 de março de 2008

KANT E OS DISSIDENTES


Evandro L. Cunha

Doutorando em Teologia


Emmanuel Kant (1724-1804) foi um pensador europeu. Filho de protestante, foi educado em escola pietista. Os pietistas eram um movimento dentro do protestantismo, tanto Calvinista quanto Luterano, que buscava resgatar a piedade prática no cristianismo. Para eles, o calvinismo e o luteranismo haviam se tornados rígidos na doutrina e liberais nas práticas. Eles valorizavam a dimensão pessoal da religião e sua responsabilidade moral perante o mundo.
A influência pietista[i] é percebida no modus vivende de Kant. Sua rotina inflexível[ii], seu rigor lógico, sua crítica a teologia racionalista, sua preocupação no campo da ética e da moral. Uma de suas frases memoráveis, conhecida tecnicamente como imperativo categórico, era: “age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-se sempre como princípio de uma legislação universal”[iii]. Em outros termos, age de tal maneira que o teu agir possa ser copiado universalmente. O imperativo categórico é um dever que nos é imposto além de nossa vontade. Temos que realizá-lo, não porque queremos, mas porque é nosso dever fazer.


KANT E OS ANARQUISTAS

Ele viveu no período do Iluminismo. Também chamado de “Esclarecimento” ou como defendia Kant, a chegada do homem à maturidade[iv]. Onde seria capaz de pensar por si mesmo sem intervenção da Igreja, do Estado ou de qualquer outra força institucional. Essa liberdade, ou autonomia do sujeito, é usar de forma pública sua capacidade de questionamento. Ser livre não é fazer o que queremos, mas o que deve ser feito – o imperativo categórico. Para Kant, ser livre é ser autônomo e não anárquico.
“Anarquismo é uma palavra que deriva da raiz grega αναρχία — an (não, sem) e archê (governador) — e que designa um termo amplo que abrange desde teorias políticas a movimentos sociais que advogam a abolição do Estado enquanto autoridade imposta e detentora do monopólio do uso da força. Exemplificando, anarquismo é a teoria liberária baseada na ausência do Estado”[v]. São contra qualquer tipo de ordem hierárquica que não seja livremente aceita. Eles não defendem a desordem, propriamente dita, mas sonham com uma sociedade onde todos os homens estejam livres de todo tipo de coerção[vi].
Tanto os iluministas quanto Kant não defenderam a liberdade anárquica.
Os anarquistas são a antítese da filosofia kanteana e do imperativo categórico. São utópicos, pois idealizam um mundo impossível na realidade pós-lapsariana.

RAÍZES FILOSÓFICAS E POLÍTICAS DOS DISSIDENTES

Em termos filosóficos, o fenômeno dos dissidentes no seio do adventismo está mais próximo do anarquismo do que do imperativo categórico (“que o teu agir possa ser copiado universalmente”). O espírito individualista do anarquismo se infiltrou nas fileiras do cristianismo hodierno. Em nome da liberdade de expressão e da autonomia do sujeito, se pisa todos os princípios morais e espirituais formulados pela filosofia cristã e pela teologia bíblica. O resultado é a fragmentação do protestantismo (congregacionalismo), o ressentimento que sufoca a ternura, mata a espiritualidade e o disvirtuamento da nossa missão como igreja. Talentos e recursos são destinados a fins excursos. Luiz Nunes em sua tese doutoral sobre crises teológicas e institucionais, observa:
“Os ministérios independentes aqui retratados, embora sejam uma barreira às tendências liberalizantes dentro da Igreja Advntista do Sétimo dia, tornaram-se a maior ameaça à missão dos adventistas, por minarem a confiabilidade doutrinária, administrativa e financeira da igreja. A diminuição de ministros no campo, o retorno de missionários além-mar e o escoamento de recursos financeiros americanos, que representavam em 1995 cerca de 55% das entradas mundiais da Igreja, significam um grande prejuízo para a evangelização mundial. Os recursos financeiros absorvidos pelos ministérios independentes estão prejudicando a Igreja organizada em anunciar a mensagem”[vii].
A ética pressupõe a presença do outro (Sartre). É essa presença do outro o limite do meu agir. Em outras palavras, eu não posso fazer tudo o quero, apenas porque eu acho que seja a coisa certa. Não posso olvidar a presença do outro. Em termos teológicos esse outro é o próprio Deus manifestado em carne e presente hoje através do Espírito Santo.
Os profetas bíblicos tinham essa consciência desse Outro que prescrutava suas ações. A ética bíblica pressupõe a presença do Outro. José no Egito[viii], Elias diante de Acabe e Jezabel[ix], Daniel em Babilônia[x], os apóstolos no Novo Testamento[xi]. Foi a ausência dessa consciência da presença constante desse Outro, que induziu Eva e Adão a pecarem. Eles pensaram que estavam “sozinhos” que no paraíso só havia estética e não ética. O agir de Eva foi copiado por Adão (imperativo categórico kanteano) e o caos foi estabelecido. Como observou Dietrich Bonhoeffer “a originária semelhança com Deus se converteu em igualdade roubada”[xii] e o homem imergiu num mundo de conflitos e desordem. Como refletiu o apóstolo Paulo: “Ora tudo isto lhes sobreveio como figuras [Τυπικως], e estão escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos” (I Cor. 10:11).
Os “adventistas” dissidentes deveriam repensar seus conceitos sobre liberdade. Como vimos, a ética pressupõe a presença do outro, em termos práticos, está implícito a idéia de responsabilidade. Se colocarmos o imperativo categórico kanteano em prática, é o Evangelho que estará sendo vivenciado em nossa vida. Liberdade com responsabilidade e missão. De acordo com Kant, a nossa liberdade é o exercício do agir universal. Antes de editar um texto na internet ou publicar um livro, deveríamos ponderar: esse meu agir pode ser copiado universalmente? O que aconteceria se todos os adventistas do sétimo dia agissem desta maneira? Se eu retenho ou administro os dízimos e ofertas do Senhor, estou reivindicando para mim uma liberdade e autoridade que não é bíblica nem consensual. Filosoficamente contraria a tudo que é universal, moralmente correto, e é uma negação da mensagem de Jesus Cristo.


CONCLUSÃO

A institucionalização do Cristianismo trouxe sérios prejuízos espirituais[xiii]. O ritualismo assassinou a expontaneidade litúrgica e o carisma (dons do espírito) deu lugar ao poder (hierarquização das funções eclesiásticas)[xiv]. O catolicismo medieval foi a corporificação deste processo lento e longo. Lutero, Calvino e seus precursores e seguidores denunciaram o abuso do poder, a intolerância, e a perda da ternura cristã. Entretanto, com o passar dos anos, os protestantes também institucionalizaram a Reforma e o movimento perdeu sua vitalidade e seus objetivos originais.
Os pioneiros do Adventismo temiam que o mesmo pudesse acontecer com eles se se organizassem. Defendiam que a organização formal faria deles uma réplica de Babilônia[xv]. Mas com o tempo eles verificaram que seria impossível manter a integridade de nossa mensagem e o desafio de nossa missão sem uma organização mínima. As questões legais envolvendo propriedades da igreja, apressou de certa forma a oficialização do movimento.
Aqueles que analisam o adventismo como um mero movimento sociológico despido dos elementos proféticos, tendem a prever um fim caótico para a instituição. Alguns têm até ressuscitado a metáfora do Leviatã de Thomas Hobbes[xvi], que ele usou para descrever o Estado, e têm aplicado à Instituição adventista. É verdade que todos nós gostaríamos de viver sem instituições, sem Estados, sem regras castradoras de nossa vontade. Mas infelizmente, esse mundo não existe. É praticamente impossível vivermos na modernidade sem a presença das instituições, quer sejam boas ou más. O que garante que o carro que você comprou é seu, não é a sua palavra, mas a sua documentação. E essa documentação tem que ser reconhecida por instituições legais que lidam com automóveis.
Pensar que podemos viver como pessoa e como grupo sem as instituições é uma grande utopia anárquica. Se isso é verdade em termos seculares, o que dizer em termos espirituais? Podemos manter nossa espiritualidade sem a instituição (João 4), mas é impossível cumprirmos a nossa missão sem ela. Ellen G. White, escreveu: “alguns têm apresentado a idéia de que, ao aproximarmo-nos do fim do tempo, cada filho de Deus agirá independemente de qualquer organização religiosa. Mas fui instruída pelo Senhor de que nesta obra não há isso e cada qual ser independente”[xvii].
Paulo e Kant estavam certos, nossa liberdade é fazer o que tem que ser feito, não porque achamos que deve ou não ser feito, mas porque existe um imperativo categórico espiritual: “ide e pregai ...” “ai de mim se não pregar....”[xviii]. Essa é a filosofia e teologia bíblicas: Ele é o Senhor e eu seu servo. Minha liberdade é fazer a Sua vontade.


[i] Bertrand Russell, História do Pensamento Ocidental (Rio de Janeiro-RJ: Ediouro, 2001), 341.
[ii] “As pessoas de Königsberg [atual Kaliningrado, capital de Kaliningrado, província russa] podiam acertar seus relógios quando ele passava sob suas janelas em seu passeio diário”. Bryan Magee, História da Filosofia (São Paulo-SP: Loyola, 1999), 132.
[iii] Emmanuel Kant, Crítica da Razão Prática (Rio de Janeiro-RJ: Ediouro, s/d), 40.
[iv] Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento” (Aufklãrung)? Em Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos (São Paulo-SP: Martin Claret, 2002), 115-122.
[v] http://pt.wikipedia.org/wiki/Anarquistas em 02 de novembro de 2006.
[vi] George Woodcock, História das Idéias e Movimentos Anarquistas (Porto Alegre-RS: L & Pm Pocket, 2002). 2 volumes.
[vii] Luiz Nunes, Crises na Igreja Apostólica e na Igreja Adventista do Sétimo Dia (Engenheiro Coelho-SP: Imprensa Universitária, 1999), 101-102.
[viii] “Como, pois, cometeria eu tamanha maldade, e pecaria contra Deus?” (Gênesis 39:9).
[ix] “Tão certo como vive o Senhor, Deus de Israel, perante cuja face estou...” (I Reis 17:1).
[x] “Resolveu Daniel firmemente não contaminar-se com as finas iguarias do rei, nem com o vinho que ele bebia; então pediu ao chefe dos eunucos que lhe permitisse não contaminar-se” (Daniel 1:8).
[xi] Falando aos escravos que se tornaram cristãos, Paulo aconselha: “Não servindo à vista, como para agradar a homens, mas como servos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus, servindo de boa vontade como ao Senhor, e não como a homens” (Efésios 6:6-7).
[xii] Dietrich Bonhoeffer, Ética (São Leopoldo-RS: Editora Sinodal, 1995), 16.
[xiii] Hans Küng, Igreja Católica (Rio de Janeiro-RJ: Editora Objetiva, 2002).
[xiv] Leonardo Boff, Igreja: Carisma e Poder (São Paulo-SP: Editora Ática, 1994).
[xv] C. Mervyn Maxwell, História do Adventismo (Santo André-SP: Casa Publicadora Brasileira, 1982), 137-150; George R. Knight, Uma Igreja Mundial:Breve História dos Adventistas do Sétimo Dia (Tatuí-SP: Casa Publicadora Brasileira, 2000), 49-66; Para um estudo mais profundo sobre a estrutura e a ameaça de institucionalismo veja a tese doutoral de Barry David Oliver, SDA Organizational Structure – Past, Present, and Future (Berrien Springs, Michigan: Andrews University Press, 1989).
[xvi] Thomas Hobbes de Malmesbury, Leviatã: Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Os Pensadores (São Paulo-SP: Editora Vida Cultural, 1997).
[xvii] Ellen G. White, Eventos Finais (Tatuí-SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 42.
[xviii] Mateus 28:19 e I Cor. 9:16.

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